Um pouco antes do início da pandemia, Lívia Pires, 40, e seu marido decidiram vender um dos dois carros e recorrer ao transporte por aplicativo. Mas nas últimas semanas, essa opção que parecia econômica tem se tornado uma grande dor de cabeça, já que a psicóloga não tem conseguido corridas durante a noite, quando sai de seu consultório. E se consegue, logo depois se frustra com um aviso de cancelamento.
“Teve uma noite em que não consegui nem táxi e meu marido já tinha dormido. Eu me organizei para dormir no consultório mesmo, mas meu marido acordou e decidiu me buscar. Depois disso, nos últimos dois meses, ele já me buscou umas cinco vezes”, diz Lívia, que mora no bairro Caiçara e trabalha no Floresta. Nesta semana chuvosa, ela preferiu trabalhar em casa, de forma remota, para não correr o risco de ficar sem transporte para voltar para casa.
A dificuldade de Lívia é compartilhada por muitos usuários de transporte por aplicativo, especialmente nos últimos meses, quando pesou ainda mais no bolso dos motoristas o valor do combustível – o etanol, muito usado pelos profissionais, subiu mais de 40% desde o início do ano. Para o consumidor, não ficou somente difícil conseguir uma corrida, como também não ter de lidar com os cancelamentos, que estão cada vez mais constantes. Especialmente em dias de chuva, como nesta semana.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa empresas que prestam serviços tecnológicos à mobilidade de pessoas ou bens, afirma que os motoristas têm direito de cancelar viagens, assim como os usuários. Punições só são previstas em casos de “comportamentos intencionais que prejudiquem a experiência dos demais membros das plataformas, como cancelar viagens reiteradamente”
(veja nota abaixo).
Os motoristas admitem que estão cancelando corridas porque muitas vezes elas não são lucrativas para eles. Ao serem acionados para um atendimento, eles logo fazem a conta. Dividem o valor anunciado pela quilometragem do deslocamento. Se o valor é inferior a R$ 2 por quilômetro, a corrida deixa de ser atrativa.
“Hoje o motorista está bem seletivo porque o valor da corrida está baixo e o custo está muito alto. Os passageiros reclamam que o preço aumentou para eles e nós explicamos que esse valor não foi repassado aos motoristas”, conta Ezaquias D’Ávila, que trabalha como motorista por aplicativo há três anos. Segundo ele, é preciso trabalhar pelo menos 13 horas por dia, de segunda a sábado, para ter uma renda de R$ 2.500 a R$ 3.000.
E não são somente as corridas curtas que afastam os motoristas. Muitos deles não querem ir ao aeroporto de Confins ou à Cidade Administrativa, porque a corrida pode gerar prejuízo. “É um valor baixo para o motorista, que ainda corre o risco de voltar com o carro vazio”, explica Ezaquias. “Temos que ser bom para os três: motorista, passageiro e aplicativo”.
Valor pago por corrida é pequeno, diz sindicato
As duas principais plataformas do setor, Uber e 99, anunciaram reajustes para os motoristas em setembro. Mas de acordo com a presidente do Sindicato dos Condutores de Veículos que Utilizam Aplicativo do Estado de Minas Gerais (Sicovapp-MG), Simone Almeida, os motoristas não sentiram a diferença. “As viagens estão cada vez mais baratas e com esse preço do combustível, nós não temos a menor condição de sair fazendo deslocamento de dois ou três quilômetros, para andar mais dois quilômetros e ganhar R$ 5 ou R$ 6”, afirma.
Segundo ela, os motoristas pedem melhores pagamentos pelas corridas, por parte dos aplicativos, e redução nos valores dos combustíveis, por parte dos poderes públicos.
A 99 afirmou que reajustou os ganhos dos motoristas parceiros entre 10% e 25%, nas 1.600 cidades do Brasil onde a empresa opera. O valor é subsidiado, segundo a empresa, e não teria afetado os valores das corridas. Há ainda um repasse integral do valor da corrida aos parceiros em localidades e horários específicos, de acordo com a 99, como incentivo aos parceiros.
A Uber informou que "intensificou seus esforços para ajudar os motoristas parceiros a reduzirem seus gastos, com parcerias que oferecem desconto em combustíveis, por exemplo, assim como tem feito uma revisão e reajustado os ganhos dos motoristas parceiros em diversas cidades". O reajuste varia conforme a localidade, segundo a empresa.
Truques para conseguir um carro
A advogada Deborah Gonçalves, 37, está entre os muitos brasileiros que trocaram o ônibus pelo transporte por aplicativo por causa da pandemia. Mas não tem sido nada fácil conseguir carro para fazer diariamente o trajeto entre o bairro Coração Eucarístico, onde mora, e o Centro de Belo Horizonte, onde trabalha.
“Pela manhã escolho uma modalidade tipo VIP, que custa mais caro, e no final do dia já aconteceu de eu não conseguir carro e caminhar por um longo trecho para sair do Centro e ir para uma área de bairro para conseguir um carro”, diz a advogada.
Ela verificou seu histórico de solicitações de viagens das últimas semanas e percebeu que 40% delas foram canceladas. “No fim do horário da tarde, quando o motorista aceita a corrida, eu imediatamente já mando uma mensagem pedindo para ele não cancelar. Tem uns que respondem bem-humorados e outros nem respondem. Quando vejo, já cancelaram”.
Confira, na íntegra, a nota da Amobitec sobre os frequentes cancelamentos de corridas:
“Em relação aos cancelamentos, os motoristas parceiros de aplicativos são profissionais independentes e, assim como os usuários, podem cancelar viagens quando julgarem necessário. Quando uma corrida específica é cancelada pelo motorista, os aplicativos rapidamente redirecionam o chamado para outro parceiro disponível.
Quando é o usuário quem cancela, da mesma forma o sistema dos aplicativos procuram redirecionar o motorista para atender um outro chamado rapidamente.
As empresas associadas da Amobitec têm políticas próprias relacionadas ao tema, porém, em linhas gerais, comportamentos intencionais que prejudiquem a experiência dos demais membros das plataformas, como cancelar viagens reiteradamente (seja o motorista ou o usuário), são analisadas pelas empresas tendo em vista seus Termos de Uso e podem levar à penalidades nas contas envolvidas.
As taxas de cancelamento são cobradas dos usuários apenas quando ocorrem após certo tempo do pedido, para recompensar os motoristas parceiros pelo seu tempo e pelo deslocamento que já realizaram em direção ao ponto de embarque. Sempre que discordar de alguma cobrança, o usuário pode reportar a situação pelo próprio aplicativo para que o suporte das empresas verifique o ocorrido e adote as providências”.