No mês passado, cirurgiões de Nova York testaram a possibilidade de transplantar um rim de um porco geneticamente modificado para um ser humano. O experimento ainda não foi um transplante de verdade, o “recipiente” não estava vivo, mas o órgão sobreviveu por algumas horas sem ser rejeitado, fazendo do experimento um sucesso.
É possível que essa tecnologia possa ser usada em transplantes de verdade em poucos anos. Seria uma nova forma possível de suprir toda a necessidade de rins para transplante — e, no futuro, talvez também outros órgãos.
Se este tipo de transplante chegar ao mercado a custos altos, sistemas de saúde no mundo inteiro vão enfrentar um dilema ético: vão ter de escolher entre atender àqueles que precisam de rins e todos os outros tratamentos que poderiam ser comprados para salvar outras vidas.
Há também uma preocupação ética em criar (e modificar geneticamente) animais para este propósito. Podemos aceitar que é permissível criar e matar um porco para salvar uma, ou duas, vidas humanas, mas ainda assim precisamos decidir o que constitui tratamento aceitável destes animais e o que é tratamento cruel.
Mesmo sem novas tecnologias, qualquer medida para aumentar a disponibilidade de órgãos cria dilemas éticos. Segundo números do Ministério da Saúde, 53.218 pessoas esperam por um transplante no Brasil, das quais 31.125 precisam de um rim. A forma mais comum é o transplante de rins de um doador falecido.
O paciente entra em uma lista, e os rins disponíveis (com consentimento da família para a doação) são alocados de acordo com o tempo de espera e com critérios médicos, incluindo a compatibilidade entre doador e recipiente: quanto maior a compatibilidade, maior a chance de sucesso do transplante. Conscientizar as pessoas da importância da doação de órgãos pode aumentar sua disponibilidade.
Mas, por motivos óbvios, aumentar o número de doadores falecidos em potencial não é uma solução desejável para o problema. No caso dos rins, a doação entre vivos também é uma opção: o paciente que precisa do órgão encontra uma pessoa compatível, disposta e capaz de doar.
Arranjos que começam a acontecer internacionalmente incluem a doação entre pares de doadores e recipientes se um paciente e o parente ou amigo que está disposto a doar um rim não forem compatíveis, o hospital ou uma organização especializada pode ajudá-los a encontrar outro par “complementar”, para uma doação cruzada, ou outros pares, uma “corrente” de doações. Nos EUA, doações altruístas para estranhos também são possíveis, mas são raras.
A doação entre vivos, em todos os seus tipos, tem o potencial de aumentar em muito o número de rins disponíveis. Em 2019, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, ocorreram 1.073 transplantes de rim com doadores vivos, e 5.210 com doadores falecidos.
Um problema da doação entre vivos é que ela não atende quem está na fila e não tem um doador. Quem não tem um amigo, parente ou estranho altruísta para doar fica para trás, mesmo que a fila ande mais rápido. É uma versão do problema do “fura-fila” da vacina, mas com a diferença de que não teríamos a maior parte dos órgãos se todas as doações de vivos tivessem que ir para estranhos, para o próximo da fila.
Obrigar compradores privados de uma vacina a doar suas doses para o SUS é muito mais aceitável do que colocar restrições parecidas em algo tão pessoal e invasivo quanto a doação de uma parte do corpo.
Outra preocupação ética é evitar que um potencial doador sofra pressão ou coação para doar ou até vender um órgão. No Brasil, parentes do recipiente podem fazer a doação diretamente, mas uma doação entre amigos precisa de autorização judicial, uma medida de proteção.
Quanto mais se facilita a doação entre vivos, mais difícil fica proteger potenciais doadores de pressão ou coação. Há quem defenda a maior facilitação possível da doação em vida—a legalização da venda de órgãos. Alguma medida desse tipo teria grande potencial de aumentar a disponibilidade de rins, mas também de expor pessoas vulneráveis à pressão e exploração econômica.
Assim como é menos aceitável exigir a doação de um rim para um estranho do que a doação de uma vacina, também é menos aceitável incentivar a venda de um rim do que a venda de um bem externo, ou do próprio trabalho, para pagar necessidades básicas. As novas tecnologias podem nos ajudar a mitigar os dilemas éticos, mas não vamos escapar deles.