Futebol internaciona

Como o Barcelona foi de 'mais que um clube' a mais um clube na bancarrota

Livro de Simon Kuper revela bastidores de decisões que fizeram time catalão gastar uma fortuna para ficar pior

16/10/2021 12h25
Por: Redação
Fonte: O Tempo

O Barcelona era, em 2019, bicampeão espanhol, tinha o melhor jogador do mundo, acumulava três títulos da Champions League em 10 anos e se orgulhava do seu modelo de gestão. Os feitos levaram o jornalista Simon Kuper à capital da Catalunha para produzir uma reportagem publicada no jornal Financial Times. Na viagem, ele teve a ideia de escrever um livro.

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Autor de "Soccernomics", lançado no Brasil em 2010, e de outras obras sobre futebol, o jornalista conseguiu autorização para ter acesso aos bastidores da instituição e falar com dirigentes, atletas e funcionários.

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Com o título "Barca: The Inside Story of the World's Greatest Football Club" [Os bastidores do maior clube de futebol do mundo], o livro foi lançado em agosto na Europa e nos EUA. Há nele um relato bem diferente daquela imagem de sucesso de dois anos atrás.

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"O retrato que descrevo é o de um clube que chegou ao máximo, ao topo, e depois caiu", afirma Kuper à reportagem. "A vida é isso: a glória e a queda. É humano. Como grupos e empresas, times se tornam mais preguiçosos, erram e observam seus rivais roubarem suas ideias. E isso aconteceu."

Lançada em inglês, sem previsão de publicação no Brasil, a obra é certeira ao elencar os acontecimentos que levaram à queda do gigante catalão. Consegue desnudar os processos internos do clube e desmistifica o que se imaginou ser um modelo de gestão e eficiência para revelar jogadores, montar times que jogam bonito e fazer os torcedores felizes.

Após anos de glória, o Barcelona acumulou dívidas de mais de R$ 8 bilhões e possuía, em agosto, patrimônio líquido negativo de R$ 2,7 bilhões, segundo relatório oficial. Só a folha do time profissional é maior do que todas as receitas mensais do clube.

As contas no vermelho são reflexo das gestões turbulentas nos últimos anos e do impacto que a pandemia, ao esvaziar o Camp Nou, gerou nas receitas. Os "directius", uma versão catalã dos cartolas, têm, segundo Kuper, um papel central nessa decadência. Não são poucos os exemplos de barbeiragens dos homens que comandaram o Barça.

Um dos erros mais claros foi o destino dado à bolada de 222 milhões de euros (R$ 1,4 bilhão) recebida do PSG pela venda de Neymar, em 2017. Em menos de um ano, o clube gastou mais do que esse montante nas contratações do francês Dembélé e do brasileiro Philippe Coutinho, que não conseguiram vingar na equipe.

O autor faz uma conta e chega a soma de mais de 1 bilhão de euros (cerca de R$ 6,5 bilhões) em contratações de atletas desde 2015. Após ouvir os dirigentes, Kuper descreve os caminhos que levam ao desperdício.

"Tem uma maneira das coisas funcionarem no clube que é externa, vem do modelo dos sócios, da imprensa. Tem essa pressão para ter o astro, a contratação mais cara", diz o jornalista. Uma marca global, o Barcelona funciona como uma associação, em que cerca de 150 mil sócios, em sua maioria residentes na Catalunha, escolhem o presidente.

O perfil dos dirigentes se assemelha: homem, catalão e rico. Bem-sucedidos em negócios, administraram grandes empresas e se encantaram com o poder que o futebol dá. "Frente a frente com agentes de jogadores, são como gazelas na mira de leões", escreve Kuper.

Desde sempre, a política no clube foi agitada. Nos últimos anos, porém, o grau de turbulência chegou ao ápice, com movimentos de impeachment, renúncia e até prisão de dois ex-presidentes.

O último a ser detido foi Josep Maria Bartomeu, que passou um dia na delegacia, em março deste ano. Ele é investigado por por supostamente ter contrado agências para criar contas em redes sociais e difamar atletas e adversários políticos.

Antes dele, o ex-presidente Sandro Rosell, de controversas relações com o Brasil, esteve na prisão. Amigo do ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, ele acabou condenado (e depois absolvido) na Espanha por lavagem de dinheiro em negociações de direitos de transmissão de TV de amistosos da seleção brasileira.

Ficou 21 meses preso. No livro, Rosell conta a primeira coisa que fez após deixar a cadeia. Parou em um hotel, sentou no bar, pediu uma cerveja e bebeu num só gole. "Aquilo foi muito bom, madre mía [minha mãe, na tradução do espanhol]. Ir da prisão à liberdade em três segundos", definiu.

Rosell foi o responsável pela contratação de Neymar, negócio que virou caso de Justiça e o fez renunciar à presidência em 2014. Antes disso, quando ainda mandava, derrubou um projeto de potencial bilionário que tinha como objetivo transformar o Barcelona num clube de um milhão de sócios.

O receio, compartilhado por seus pares, era que num futuro próximo uma maioria de associados chineses pudesse eleger um presidente não catalão. Para os chamados "directius", o Barça é uma questão familiar. Segundo eles, é um equívoco dizer que são 150 mil os que votam para presidente. "Não, são 20 mil famílias", diz Rosell.

Entre esses torcedores, um assunto deixava todos tensos: o que será do clube quando Lionel Messi partir? O medo, segundo Kuper, levou o ex-presidente Josep Maria Bartomeu a ceder no que fosse preciso para manter o argentino. Não queria ficar marcado como o presidente que deixou o maior jogador da história do clube ir embora.

Para isso, fechou acordos que garantiram mais de 555 milhões de euros (R$ 3,5 bilhões) nos últimos quatro anos ao craque. O mesmo acerto liberava o jogador sem nenhum pagamento ao clube em 2021, o que acabou acontecendo, com Joan Laporta na presidência.

Kuper defende que o slogan "Més que un club" (em catalão, mais que um clube), criado na década de 1960, durante a ditadura do general Francisco Franco, já não faz sentido. Ele elenca decisões internas, como o fato de o clube ter cedido espaço na camisa para patrocínio, como todos os outros times, e externas para justificar a sua opinião.

Não foi só o Barça que mudou, a Catalunha também, argumenta. Antes, seus torcedores representavam a resistência pacífica com as bandeiras e as conversas em catalão no Camp Nou, o que era proibido durante o franquismo.

"Esses símbolos uniam as pessoas e geravam simpatia em outros lugares fora da Espanha", afirma. "Hoje, a discussão sobre a independência se radicalizou, é motivo de discórdia, desunião, como acontece com o Brexit, com Trump e Bolsonaro".

O autor diz que o tom crítico do livro não gerou, até agora, queixas dos dirigentes entrevistados. Brinca que uma coincidência pode ter anestesiado qualquer reação. O lançamento aconteceu no mesmo dia em que Messi anunciou a saída do clube, em agosto.

"Certamente, eles estavam ocupados com problemas maiores", conclui.

"Barça: The Inside Story of the World's Greatest Football Club"

Autor: Simon Kuper

Editora: Short Books Ltd (Kindle)

Preço: R$ 48,43 (384 págs.)

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